Várias foram as vezes em que ouvimos “um dia de cada vez”, “só por hoje”, “só mais 24h”, “um momento, um a seguir ao outro” sem termos consciência plena dos benefícios que esse estilo de vida poderá ter. Estar no momento presente (ser mindful) pode significar diversas coisas, dependendo da pessoa que responde. Algumas pessoas utilizam a prática meditativa para acalmar uma mente preocupada, dispersa ou agitada (o chamado “overthinking”), outras experimentam atividades artísticas, nas quais se envolvem plenamente e de forma consciente e presente, vivenciando sensações prazerosas. Apesar de existirem diversas formas de praticar mindfulness, não importa qual o caminho que segue para desenvolver uma atenção plena, pois o objetivo final é sempre o mesmo: encontrar clareza e fazer escolhas saudáveis ​, ao invés de “cair” em padrões disfuncionais, automáticos e/ou destrutivos.

Quando nos encontramos impotentes perante a dependência é díficil conetarmos-nos com o aqui e agora, pois existe uma tendência a ruminar no passado e de catastrofizar acerca do futuro, o que nos leva, consequentemente, ao evitamento e à fuga das sensações desagradáveis associadas a estes estilos de pensamento, através do consumo ou de comportamentos aditivos. Tentar evitar ou escapar destas sensações só as torna mais fortes e duradouras. Porque aquilo a que resistimos, persiste, como afirmou Rumi, poeta sufista.

É importante, na recuperação, formar hábitos saudáveis ​​que ajudarão a renovar a mente e o corpo. Apesar de, inicialmente, tal tarefa parecer e poder ser, de facto, exigente, reservar um momento, todos os dias, para se centrar e focar em si mesm@ é importante.

 As abordagens baseadas em mindfulness ajudam as pessoas a aprenderem a mudar a sua relação com o desconforto – seja esse desconforto físico, mental ou emocional. Quando surge uma sensação desagradável, como um desejo/impulso ou um estado emocional aversivo, como a ansiedade, as pessoas aditas em recuperação, que praticam mindfulness são mais capazes de reconhecer o seu desconforto, tornando-se capazes de observar os seus impulsos de uso/abuso com uma atitude aberta e curiosa, a partir de um ponto de consciência, aceitação e não julgamento. 

Uma recuperação consciente

O cérebro é considerado o único órgão que é moldado pela experiência e comportamento individual. Quando nos envolvemos repetidamente em pensamentos e comportamentos que impulsionam a adição, inconscientemente, moldamos o nosso cérebro para a procura constante, através da gratificação imediata, de fuga de sensações, pensamentos e sentimentos que consideramos desagradáveis. Tal impede-nos de ficar atentos e conscientes das situações, tais como elas são, sem associarmos assunções e distorcermos a realidade.

Um dos benefícios das abordagens baseadas em mindfulness é que podemos realizar diferentes práticas de mindfulness a qualquer hora, em qualquer lugar, sendo que a única condição necessária é estarmos intencionalmente abertos a experimentar novas maneiras de experienciar o mundo. A prática de mindfulness consiste então em manter um estado de atenção plena dos pensamentos, emoções ou experiências, sem julgamento e focando-se no momento presente (Jon Kabat-Zinn, 1993).

A prática de mindfulness beneficia a recuperação, de várias maneiras específicas, ajudando a pessoa a:

  • Aprender a reconhecer os “gatilhos” (desencadeantes);
  • Compreender os desejos, quando estes surgem, sem agir ou reagir em função destes;
  • Diminuir a “necessidade” de corrigir ou controlar situações, incluindo a sua experiência interna (e.g. emoções, sensações);
  •  Melhorar a comunicação, fornecendo mais oportunidades de responder intencionalmente, em vez de reagir automaticamente;
  • Aumentar a capacidade de lidar com sofrimento emocional.

Se pretende ter uma recuperação mais consciente e plena, estas práticas poderão ser uma boa maneira de começar:

  1. Estar presente: são frequentes as vezes em que realizamos as nossas tarefas em piloto automático, não tendo consciência plena, por exemplo, do que acabámos de assistir na televisão ou de como chegámos a determinado destino.  Ser e estar mindful consiste em estar no presente momento, aumentando a nossa consciência e abrindo os olhos ao “aqui e agora”, aprendendo a lidar com a realidade como ela realmente, é ao invés de como a percecionamos.

Pode praticar estar presente prestando atenção às coisas comuns do seu dia à dia –  a sensação dos pés subindo e descendo enquanto caminha, o sabor e a textura da comida na sua boca, o calor ou frio da água na sua pele quando está a tomar banho, o “barulho” quando se encontra num local silencioso. 

  • Focar na respiração: a respiração é um elemento central da vida e fulcral na prática de mindfulness, podendo funcionar como uma verdadeira âncora. Quando nos encontramos ansiosos é fácil entrar numa espiral negativa de pensamentos auto-destrutivos. Nestes momentos, o foco na respiração poderá reestabelecer uma sensação de clareza e de calma, o que poderá ajudar a manter a sobriedade. Assim, ao longo do dia, tire alguns minutos para se concentrar na respiração: inspire pelas narinas e expire pela boca. Note a sensação do ar a entrar e a sair. A sua respiração está lenta ou ofegante? Fria ou quente? É superficial ou profunda?
  • Reconhecer pensamentos enquanto pensamentos:  os nossos pensamentos não são factos, mas sim, tantas vezes, falsas suposições, equívocos e crenças, por vezes, irracionais, que construímos, de acordo com as nossas experiências de vida. Estes pensamentos automáticos, quando derivados de crenças nucleares (desenvolvidas, então, ao longo da vida), poderão tornar-se altamente prejudiciais, uma vez que, como estas crenças determinam o que pensamos acerca de nós próprios e dos outros, influenciam a nossa interação com o mundo e a eficácia da nossa gestão emocional. A prática de mindfulness ensina-nos a tornarmos conscientes os nossos pensamentos, com aceitação e sem julgamentos, capacitando-nos a identificar e “deixar ir” ideias auto-destrutivas.

Ao longo do dia tente identificar os seus pensamentos (e.g. críticos, controladores, passivos, etc..), especialmente em situações em que se sente ansios@ ou deprimi@. Observe, com abertura, curiosidade e paciência, quais os pensamentos que ativaram tais sentimentos. De seguida, tente deixá-los ir.

  • Alargar a bondade e compaixão: o cultivo de sentimentos bondosos perante os outros (e nós próprios) permite-nos apresentar uma postura mais empática, compassiva, e tolerante em situações de frustração. Durante a dependência ativa são várias as dificuldades interpessoais apresentadas, nomeadamente ao nível da comunicação, podendo vivenciar-se ressentimento, culpa e vergonha. Sentimos, por vezes, desconexão dos outros, o que gera sofrimento interior. Ao apresentarmos uma postura bondosa e compassiva, fortalecemos a nossa capacidade de construir relacionamentos saudáveis​, estáveis e significativos. Em situações de frustração, preste atenção e tente colocar-se no papel do outro, tente compreender os medos ou sonhos do outro, e lembre-se de ser gentil na sua interação: responda ao invés de reagir.

A prática de mindfulness poderá desempenhar um papel bastante importante na recuperação do abuso de substâncias. Ao facilitar uma percepção consciente, sem julgamentos e sem apego, poderá repensar a natureza dos estímulos externos e ciclos internos disfuncionais (e.g. ansiedade, raiva, culpa, vergonha), que podem desencadear momentos de maior vulnerabilidade à recaída. Tal tomada de consciência do momento, tal como ele é e não como o percebemos, poderá influenciar a sua tomada de decisão de forma construtiva e saudável.

Como a maioria das coisas, a repetição das práticas ajudará a torná-las uma “segunda natureza”, acontecendo, a uma dada altura que, tirar um momento apenas para respirar conscientemente, se torna parte do seu novo “normal”. Um lembrete de que os sentimentos desagradáveis vão passar com o tempo e que tudo na vida é impermanente.  Fazer isso pode ajudá-l@ a aliviar a pressão sentida no seu trabalho, na sua família e até mesmo nos momentos de euforia em que deseja voltar a “usar” a substância. O desenvolvimento da atenção plena dá ao seu corpo a oportunidade de “sentir novamente”, enquanto está sóbrio, e isso pode mudar a sua vida.

Natacha Cabete